Clonagem é um mecanismo comum de propagação da espécie em plantas ou bactérias. De acordo com Webber (1903), o clone é definido como uma população de moléculas, células ou organismos que se originaram de uma única célula e que são idênticas à célula original e entre si.
Em humanos, clones naturais são os gêmeos idênticos que se originam da divisão de um único óvulo fertilizado. A grande revolução que a Dolly provocou abriu caminho para a possibilidade de clonagem humana. Pela primeira vez, ficou patente que era possível clonar um mamífero, isto é, produzir uma cópia geneticamente idêntica a partir de uma célula somática diferenciada. Para entendermos por que essa experiência foi surpreendente, precisamos recordar um pouco de embriologia.
Todos nós já fomos uma célula única, resultante da fusão de um óvulo com um espermatozoide. Essa primeira célula já tem, em seu núcleo, o DNA com toda a informação genética necessária para gerar um novo ser. Nas células, o DNA fica extremamente condensado e organizado em cromossomos. Com exceção das nossas células sexuais, o óvulo e o espermatozoide que têm 23 cromossomos, todas as outras células do nosso corpo têm 46 cromossomos. Em cada uma delas, existem 22 pares que são iguais nos dois sexos, os chamados autossomos, e um par de cromossomos sexuais : XX no sexo feminino e XY no sexo masculino. As células com 46 cromossomos são chamadas células somáticas.
Voltemos agora a nossa primeira célula resultante da fusão do óvulo e do espermatozoide. Logo após a fecundação, ela começa a dividir-se: uma célula em duas, duas em quatro, quatro em oito e assim por diante. Pelo menos até a fase de oito células, cada uma delas é capaz de desenvolver-se num ser humano completo. Por isso, são chamadas de totipotentes. Na fase de 8 a 16 células, as células do embrião se diferenciam em dois grupos: um grupo de células externas, que vão originar a placenta e os anexos embrionários, e uma massa de células internas que vai originar o embrião propriamente dito. Setenta e duas horas depois da fecundação, esse embrião agora com cerca de 100 células passa a ser chamado de blastocisto. É nessa fase que ocorre sua implantação na cavidade uterina. As células internas do blastocisto que vão originar as centenas de tecidos que compõem o corpo humano são chamadas de células-tronco embrionárias pluripotentes.
Num dado momento, porém, as células somáticas, que até então eram todas iguais, começam a diferenciar-se nos vários tecidos que vão compor o organismo: sangue, fígado, músculos, cérebro, ossos, etc… Os genes que controlam essa diferenciação e o processo pelo qual isso ocorre ainda é um mistério.
O que sabemos é que, uma vez diferenciadas, as células somáticas perdem a capacidade de originar qualquer tecido. As descendentes de uma célula diferenciada vão manter as mesmas características daquela que as originou, isto é, células de fígado vão originar células de fígado, células musculares vão originar células musculares e assim por diante. Apesar do número de genes e do DNA serem iguais em todas as células do nosso corpo, nas células somáticas diferenciadas, os genes se expressam de maneira diferente em cada tecido, isto é, a expressão gênica é específica para cada tecido. Com exceção dos genes responsáveis pela manutenção do metabolismo celular (“housekeeping genes”) que se mantêm ativos em todas as células do organismo, só irão funcionar em cada tecido ou órgão os genes importantes para sua manutenção. Os outros se mantêm “silenciados” ou inativos.
O PROCESSO DE CLONAGEM REPRODUTIVA
A grande notícia que a Dolly trouxe consigo foi justamente a descoberta de que uma célula somática de mamífero, já diferenciada, poderia ser reprogramada ao estágio inicial e voltar a ser totipotente. Isso foi conseguido transferindo o núcleo de uma célula somática da glândula mamária da ovelha que originou Dolly para um óvulo enucleado que, surpreendentemente, começou a comportar-se como um óvulo recém fecundado por um espermatozoide. Isso provavelmente ocorreu porque o óvulo, quando fecundado, tem mecanismos — para nós ainda desconhecidos – para reprogramar o DNA de modo a tornar todos os seus genes novamente ativos, o que ocorre no processo normal de fertilização.
Para obtenção de um clone, o óvulo enucleado para o qual foi transferido o núcleo da célula somática foi inserido no útero de outra ovelha. No caso da clonagem humana reprodutiva, a proposta seria retirar-se o núcleo de uma célula somática, que teoricamente poderia ser de qualquer tecido de uma criança ou de um adulto, inserir esse núcleo em um óvulo e implantá-lo num útero (que funcionaria como barriga de aluguel). Se esse óvulo conseguir desenvolver-se, teremos um novo ser com as mesmas características físicas da criança ou do adulto de quem foi retirada a célula somática. Seria como um gêmeo idêntico nascido posteriormente.
Já sabemos que não é um processo fácil. Dolly só nasceu depois de 276 tentativas que fracassaram. Além disso, dentre as 277 células “da mãe de Dolly“ que foram inseridas num óvulo sem núcleo, 90% não alcançaram nem o estágio de blastocisto. A tentativa posterior de clonar outros mamíferos, tais como camundongos, porcos, bezerros, um cavalo e um veado, também tem mostrado eficiência muito baixa e proporção muito grande de abortos e embriões malformados. Penta, a primeira bezerra brasileira clonada a partir de uma célula somática adulta, em 2002, morreu com um pouco mais de um mês. Ainda em 2002, foi anunciada a clonagem do “copycat” o primeiro gato de estimação clonado a partir de uma célula somática adulta. Para isso, foram utilizados 188 óvulos que geraram 87 embriões e apenas um animal vivo. Na realidade, experiências recentes, com diferentes modelos animais têm mostrado que a reprogramação dos genes para o estágio embrionário, processo que originou Dolly, é extremamente difícil.
O grupo liderado por Ian Wilmut, cientista escocês que se tornou famoso por essa experiência, afirma que praticamente todos os animais clonados nos últimos anos a partir de células não embrionárias estão com problemas (Rhind , 2003). Entre os diferentes defeitos observados nos pouquíssimos animais que nasceram vivos após inúmeras tentativas, observam-se placentas anormais, gigantismo em ovelhas e gado, defeitos cardíacos em porcos, problemas pulmonares em vacas, ovelhas e porcos, problemas imunológicos, falha na produção de leucócitos, defeitos musculares em carneiros. De acordo com Hochedlinger e Jaenisch (2003), os avanços recentes em clonagem reprodutiva permitem quatro conclusões importantes: 1) a maioria dos clones morre no início da gestação; 2) os animais clonados têm defeitos e anormalidades semelhantes independentemente da célula doadora ou da espécie; 3) essas anormalidades provavelmente ocorrem por falhas na reprogramação do genoma; 4) a eficiência da clonagem depende do estágio de diferenciação da célula doadora. De fato, a clonagem reprodutiva a partir de células embrionárias tem mostrado uma eficiência de 10 a 20 vezes maior provavelmente porque os genes que são fundamentais no início da embriogênese estão ainda ativos no genoma da célula doadora. (Hochedlinger e Jaenisch, 2003)
É interessante que, dentre todos os mamíferos que já foram clonados, a eficiência é um pouco maior em bezerros (cerca de 10% a 15%). Por outro lado, um fato intrigante é que ainda não se tem notícia de macaco ou cachorro que tenha sido clonado. Talvez seja por isso que a cientista inglesa Ann McLaren afirme que as falhas na reprogramação do núcleo somático possam constituir uma barreira intransponível para a clonagem humana.
Mesmo assim, pessoas como o médico italiano Antinori ou a seita dos raelianos defendem a clonagem humana, procedimento que tem sido proibido em todos os países. Na realidade, em documento assinado em 2003, as academias de ciências de 63 países, inclusive do Brasil, pedem o banimento da clonagem reprodutiva humana. O fato é que a simples possibilidade de clonar humanos tem suscitado discussões éticas em todos os segmentos da sociedade. Por que clonar? Quem deveria ser clonado ? Quem iria decidir? Quem será o pai ou a mãe do clone? O que fazer com os clones que nascerem defeituosos?, são questões sempre em pauta.
Na verdade, o maior problema ético atual é o enorme risco biológico associado à clonagem reprodutiva. No meu entender, seria a mesma coisa que discutir os prós e os contras da liberação de uma medicação nova, cujos efeitos são devastadores e ainda totalmente incontroláveis.
Apesar de todos os argumentos contra a clonagem humana reprodutiva, experiências com animais clonados têm-nos ensinado muito acerca do funcionamento celular. Por outro lado, a tecnologia de transferência de núcleo para fins terapêuticos, a chamada clonagem terapêutica, poderá ser extremamente útil para obtenção de células-tronco.
A TÉCNICA DE CLONAGEM TERAPÊUTICA PARA OBTENÇÃO DE CÉLULAS-TRONCO
Se pegarmos o óvulo cujo núcleo foi substituído pelo núcleo de uma célula somática e, em vez de inseri-lo em um útero, deixarmos que ele se divida no laboratório, teremos a possibilidade de usar essas células que, na fase de blastocisto, são pluripotentes, para fabricar diferentes tecidos. Isso abrirá perspectivas fantásticas para futuros tratamentos, porque hoje só se consegue cultivar em laboratório células com as mesmas características do tecido de onde foram retiradas. É importante que as pessoas entendam que, na clonagem para fins terapêuticos, serão gerados apenas tecidos, em laboratório, sem implantação do óvulo no útero. Não se trata de clonar um feto até alguns meses dentro do útero para depois retirar-lhe os órgãos, como alguns acreditam. Também não há por que chamar esse óvulo, após a transferência de núcleo, de embrião porque ele nunca terá esse destino.
Pesquisa publicada na revista Science, por um grupo de cientistas coreanos (Hwang e col, 2004) confirmou a possibilidade de obter células-tronco pluripotentes a partir da técnica de clonagem terapêutica ou transferência de núcleos (TN). O trabalho foi feito graças a participação de 16 mulheres voluntárias que doaram ao todo 242 óvulos e células cumulus (células que ficam ao redor dos óvulos) para contribuir com pesquisas visando à clonagem terapêutica. As células cumulus, que já são diferenciadas, foram transferidas para os óvulos dos quais haviam sido retirados os núcleos. De todos eles, 25% conseguiram dividir-se e chegar ao estágio de blastocisto, portanto capazes de produzir linhagens de células-tronco pluripotentes.
A clonagem terapêutica teria a vantagem de evitar rejeição se o doador fosse a própria pessoa. Seria o caso, por exemplo, de reconstituir a medula em alguém que se tornou paraplégico após um acidente ou para substituir o tecido cardíaco comprometido por um infarto. Entretanto, essa técnica tem limitações. No caso dos afetados por doenças genéticas, o doador não poderia ser a própria pessoa, pois a mutação patogênica causadora da doença está presente em todas as células. Usar linhagens de células-tronco embrionárias de outra pessoa pode provocar o problema da compatibilidade entre o doador e o receptor. Seria o caso, por exemplo, de um indivíduo afetado por distrofia muscular progressiva que necessita substituir tecido muscular.
Ele não poderia utilizar-se de suas próprias células-tronco, mas teria de recorrer a um doador compatível, eventualmente, um parente próximo. Além disso, não sabemos se as células obtidas de uma pessoa idosa com doença de Alzheimer, por exemplo, uma vez clonadas, teriam a mesma idade do doador ou seriam células jovens. Outra questão em aberto seria a reprogramação dos genes que poderiam inviabilizar o processo, dependendo do tecido ou do órgão a ser substituído.
Em resumo, por mais que sejamos favoráveis à clonagem terapêutica, trata-se de uma tecnologia que necessita de muita pesquisa antes de ser aplicada no tratamento clínico. Por esse motivo, a curto prazo, a grande esperança para terapia celular vem da utilização de células-tronco de outras fontes.
TERAPIA CELULAR COM OUTRAS FONTES DE CÉLULAS-TRONCO
a) Indivíduos adultos
Existem células-tronco em vários tecidos (medula óssea, sangue, fígado) de crianças e adultos. Entretanto, a quantidade é pequena e não sabemos ainda em que tecidos são capazes de diferenciar-se. Pesquisas recentes mostraram que células-tronco retiradas da medula de indivíduos com problemas cardíacos foram capazes de reconstituir o músculo do seu coração, o que abre perspectivas fantásticas para o tratamento de problemas cardíacos. A maior limitação dessa técnica – autotransplante -, porém, é não servir para portadores de doenças genéticas.
É importante lembrar que as doenças genéticas afetam entre 3% e 4% das crianças que nascem, ou seja, mais de cinco milhões de brasileiros, se considerarmos uma população de 170 milhões de habitantes. É verdade que nem todas as doenças genéticas poderiam ser tratadas com células-tronco, mas, se pensarmos somente nas doenças neuromusculares degenerativas que afetam uma em cada mil pessoas, estaremos falando em quase 200.000 pacientes.
b) Cordão umbilical e placenta
Pesquisas recentes vêm mostrando que o sangue do cordão umbilical e da placenta são ricos em células-tronco. Entretanto, também não sabemos ainda qual é o potencial de diferenciação dessas células em diferentes tecidos. Se as pesquisas com células-tronco de cordão umbilical derem os resultados esperados, isto é, se as células-tronco forem realmente capazes de regenerar tecidos ou órgãos, essa será certamente uma notícia fantástica, porque não envolve questões éticas. Ainda assim, porém, teremos de resolver o problema de compatibilidade entre as células-tronco do cordão doador e o receptor. Para tanto, será necessário criar, com a maior urgência, bancos de cordão públicos à semelhança dos bancos de sangue, porque se sabe que quanto maior o número de amostras de cordão em um banco, maior a chance de achar um doador compatível.
Experiências recentes já demonstraram que o sangue do cordão umbilical é o melhor material para substituir a medula em casos de leucemia. Por isso, a criação dos bancos de cordão é prioridade que se justificaria somente pelo fato de servirem de base para o tratamento de doenças sanguíneas, mesmo antes de serem confirmados os resultados de outras pesquisas.
c) Células embrionárias
Se as células-tronco de cordão tiverem a potencialidade desejada, a alternativa será o uso de células-tronco embrionárias obtidas de embriões não utilizados e que são descartados em clínicas de fertilização. Opositores ao uso de células embrionárias para fins terapêuticos argumentam que isso poderia gerar um comércio de óvulos ou que “embriões humanos” seriam destruídos e não é ético destruir uma vida para salvar outra.
ASPECTOS ÉTICOS
Apesar desses argumentos, o uso de células-tronco embrionárias para fins terapêuticos, obtidas tanto pela transferência de núcleo como de embriões descartados em clínicas de fertilização, é defendido por todos aqueles, e são muitos, que poderão beneficiar-se com a aplicação dessa técnica e pela maioria dos cientistas.
As 63 academias de ciência do mundo, que se posicionaram contra a clonagem reprodutiva, defendem as pesquisas com células embrionárias para fins terapêuticos. Em relação aos que acham que a clonagem terapêutica pode abrir caminho para clonagem reprodutiva, devemos lembrar que existe uma diferença intransponível entre os dois procedimentos: a implantação e a não implantação em um útero humano. Basta proibir a implantação no útero!
Se pensarmos que qualquer célula humana pode ser teoricamente clonada e gerar um novo ser, poderemos chegar ao exagero de achar que toda vez que tiramos a cutícula ou arrancamos um fio de cabelo, estamos destruindo uma vida humana em potencial. Afinal, o núcleo de uma célula da cutícula poderia ser colocado em um óvulo enucleado, inserido em um útero e gerar uma nova vida!
Por outro lado, a cultura de tecidos é prática comum em laboratório, apoiada por todos. A única diferença, no caso, seria o uso de óvulos (quando não fecundados são apenas células) que permitiriam a produção de qualquer tecido no laboratório. Ou seja, em vez de poder produzir apenas um tipo de tecido, já especializado, o uso de óvulos permitiria fabricar qualquer tipo de tecido. O que há de antiético nisso?
Quanto ao comércio de óvulos, não seria a mesma coisa do que já ocorre com o transplante de órgãos? Não é mais fácil doar um óvulo do que um rim? Cada um de nós pode fazer a si próprio esta pergunta: “Eu doaria um óvulo para ajudar alguém? Para salvar uma vida?”.
No que se refere à destruição de “embriões humanos”, novamente devemos lembrar que estamos falando de cultivar tecidos ou, futuramente, órgãos a partir de embriões que são normalmente descartados e que nunca serão inseridos em um útero. Sabemos que 90% dos embriões gerados em clínicas de fertilização e inseridos num útero nas melhores condições possíveis não geram vida. Além disso, um trabalho recente (Mitalipova et al., 2003) mostrou que células obtidas de embriões de má qualidade, que não teriam potencial para gerar uma vida, mantêm a capacidade de gerar linhagens de células-tronco embrionárias e, portanto, de gerar tecidos.
Em resumo, é justo deixar morrer uma criança ou um jovem afetado por uma doença neuromuscular letal para preservar um embrião cujo destino é o lixo? Um embrião que, mesmo implantado em um útero, teria potencial baixíssimo de gerar um indivíduo? Ao usar células-tronco embrionárias para regenerar tecidos em uma pessoa condenada por uma doença letal, na realidade não estamos criando vida? Isso não é comparável ao que se faz hoje nos transplantes, quando se retira os órgãos de uma pessoa com morte cerebral (mas que poderia permanecer em vida vegetativa indefinidamente)?
É extremamente importante que as pessoas entendam a diferença entre clonagem humana, clonagem terapêutica e terapia celular com células-tronco embrionárias antes de assumir uma posição contrária. Por outro lado, também não podemos acreditar que as células-tronco sejam capazes de curar todas as doenças humanas. As pesquisas que estão se iniciando agora serão fundamentais para responder inúmeras questões sobre o potencial das células-tronco adultas em comparação com o das embrionárias, sobre as doenças que poderão ser tratadas e quais serão os benefícios e riscos da terapia celular.
REFERÊNCIAS
Hochedlinger K, Jaenish R (2003): Nuclear transplantation, embryonic stem cells and the potential for cell therapy. N. Engl. Journal of Medicine 349:275-212
Mitalipova M, Calhoun J, Shin S, Wininger D et al. (2003): Human embryonic stem cells lines derived from discarded embryos. Stem cells 21:521-526
Rhind SM, Taylor JE, De Sousa PA, King TUI, McGarry M, Wilmut I (2003): Human Cloning: can it be made safe? Nature reviews 4:855-864
Hwang SW, Ryu YJ, Park JH, Park ES, Lee EG, Koo JM et al. (2004) : Evdence of a plurpotent embryonic stem cell line derived from a cloned blastocyst. Scienceexpress: !2 de fevereiro
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