BBC BRASIL
A automação "engole" empregos ao
redor do mundo, mas ainda está distante de substituir trabalhadores que
combinem diversas habilidades complementares entre si - em especial
habilidades sociais, como a capacidade de escutar e de trabalhar
eficientemente em equipe.
A explicação é do pesquisador David
Deming, professor de Políticas Públicas, Educação e Economia na
Universidade Harvard e autor de um estudo chamado A crescente importância de habilidades sociais no mercado de trabalho, publicado em maio.
Na
pesquisa, que compila dados do mercado de trabalho dos EUA entre 1980 e
2012, ele nota um aumento na oferta de empregos para funções que
requerem alto grau de interação humana, como gerentes, professores,
enfermeiros, médicos e advogados.
Enquanto isso, empregos
puramente técnicos e de baixa interação humana, ocupados por exemplo por
matemáticos e engenheiros, representam parcela menor do total da mão de
obra americana.
O mais expressivo crescimento de empregos - e
salários - ocorreu, segundo Deming, em funções que exigem tanto
conhecimentos matemáticos/técnicos quanto habilidades sociais. Para
muitos desses empregos, a tecnologia se torna algo complementar, que
ajuda o trabalhador a aumentar sua produtividade, em vez de
substituí-lo.
"Empregos com salários melhores cada vez mais exigem habilidades
sociais", argumenta Deming. "A interação social se mostrou - ao menos
até o momento - difícil de ser automatizada."
Em entrevista por
telefone à BBC Brasil, o pesquisador fala sobre a importância de essas
habilidades serem praticadas pelos profissionais e incorporadas aos
sistemas de ensino.
BBC Brasil - Você menciona em seu
estudo empregos tradicionalmente "analógicos" - como de advogados,
professores, enfermeiros, médicos - em que os salários têm crescido nos
EUA. Há uma crescente importância deles, mesmo na era da tecnologia?
David Deming - As
pessoas costumam focar em empregos tecnológicos porque é onde está a
inovação e onde há funções que não existiam antes - é algo novo e
empolgante. Mas ainda são uma parcela pequena dos empregos americanos e
estão fortemente concentrados em alguns lugares.
Mas todos
precisamos de médicos, advogados e etc. Então quando você observa o
crescimento do mercado de trabalho americano, eles ficam com a maior
parcela.
A outra coisa é que empregos relacionados à informática
são os únicos empregos que estão crescendo dentro da categoria STEM
(sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática).
Essas ocupações estão, na verdade, encolhendo (percentualmente em
relação ao total de empregos nos EUA).
Acho que o motivo disso é que novas tecnologias automatizam empregos técnicos que não requerem muita interação social.
Há
muitas habilidades que são difíceis para as pessoas, mas fáceis para
máquinas. E há muitas habilidades que são difíceis para máquinas, mas
fáceis para as pessoas.
Tendemos a pensar na habilidade de fazer cálculos,
por exemplo, como um indicativo de que uma pessoa é inteligente e apta à
universidade. Mas isso é algo trivial (para um computador). Em
contrapartida, a habilidade de ter uma conversa não estruturada de dois
minutos com outra pessoa é algo que quase qualquer pessoa pode fazer,
mas é muito difícil criar um programa de computador capaz de fazê-lo.
Há uma diferença entre o que achamos que é técnico e difícil e o que de fato é difícil de ser automatizado.
Por isso, há mais automatização, por exemplo, do trabalho de engenheiros do que do de médicos ou economistas.
BBC Brasil - Aí que as habilidades sociais se tornam mais importantes.
Deming - Sim, é o que eu defendo no meu trabalho com os dados que analisei.
BBC Brasil - Quais habilidades sociais você considera mais importantes?
Deming -
Depende de o que você chama de habilidades sociais. Para mim, não
necessariamente significa ser cortês, de boas maneiras. É parte disso -
pessoas extrovertidas, boas em "conversas de happy hour", provavelmente
têm também boas habilidades sociais. Mas vejo como sendo mais uma
questão de produção no ambiente de trabalho.
Muitos empregos
requerem que você combine diversos "inputs", de pessoas e máquinas, para
produzir algo. Se você é um consultor ou desenvolvedor de software, por
exemplo, muitas vezes trabalha com uma grande equipe - e a
habilidade-chave aí é trabalhar com diferentes pessoas fazendo coisas
diferentes, combinando as atividades delas com as suas de modo
produtivo.
Então, há pessoas que não são necessariamente
extrovertidas, talvez até sejam reservadas, mas que são boas em entender
os demais e fazer parte de um grupo.
E conheço pessoas, e tenho certeza de que você
conhece também, que são extrovertidas, falantes, mas não necessariamente
ouvem os demais e fazem o que querem - e são ruins em trabalho em
equipe.
O que estou tentando dizer é que penso em termos de habilidade de trabalhar em equipe.
BBC
Brasil - Mesmo com o avanço tecnológico, a ideia é que trabalhadores
com habilidades sociais desenvolvidas não serão substituídos?
Deming -
Sim. Uma das coisas que aprendemos sobre como as mudanças tecnológicas
afetam o mercado de trabalho é que as pessoas tendem a focar muito na
substituição de pessoas por máquinas, mas não costumam ver que se a
tecnologia não te substitui, ela tende a te tornar mais valioso ou
produtivo.
O fato de que haja um software que permita a mim, um
professor, analisar uma base de dados com rapidez me faz economizar
tempo - isso não substituiu o meu trabalho ou me deixou obsoleto, apenas
me tornou mais produtivo, porque me permitiu dedicar mais tempo a
escrever, por exemplo.
A mensagem é: se você tem esse tipo de trabalho, em
que tem de fazer tarefas analíticas mas também trabalhar com outras
pessoas, as máquinas vão te tornar ainda mais valioso - porque se você é
bom nas tarefas analíticas, você conseguirá usar as máquinas (que
automatizarão essas tarefas) para aumentar sua produtividade e não ser
substituído.
BBC Brasil - Então se você fosse aconselhar
um trabalhador que teme ser substituído pela tecnologia, será que é
encontrar funções em que a tecnologia o ajude a ser mais eficiente?
Deming -
Isso. A vantagem que as pessoas têm sobre a tecnologia é que são
flexíveis: podem dedicar seu tempo a diferentes tarefas, podem liderar
uma equipe.
As máquinas não são flexíveis assim. Se você quer
proteger sua carreira do (desenvolvimento tecnológico) futuro, você deve
escolher habilidades e capacidades que sejam complementares entre si e
não necessariamente diretamente relacionadas.
Por exemplo, você é
bom em trabalho em equipe e em codificação. Não haverá num futuro
próximo nenhuma máquina capaz de fazer essas duas coisas juntas. A
mensagem é: não seja um pônei de um único truque. É uma expressão
americana que quer dizer não seja bom em apenas uma coisa, seja bom em
várias.
BBC Brasil - E como uma pessoa pode melhorar suas habilidades sociais?
Deming -
Não sei se tenho a resposta a essa pergunta com rigor acadêmico, porque
parte da motivação desse projeto é colocar o assunto em pauta. Ou seja,
ainda há muito trabalho a ser feito a respeito de como medir e melhorar
essas habilidades.
Mas minha intuição é de que é parecido ao que
as pessoas pensam do QI - alguns nascem com mais que os outros, mas
esses ainda podem praticar e melhorar.
Alguns têm alto QI, outros
têm baixo, mas o QI não é um indicativo perfeito do seu desempenho
escolar, porque você pode estudar mais, dar mais valor e se esforçar
(para compensar a deficiência).
Você pode melhorar suas habilidades sociais com
prática, e não apenas em conversas de happy hour, mas em colocar-se na
posição dos outros. Tente imaginar a conversa sob a perspectiva do
outro, e não só da sua.
É algo que não fazemos muito nas salas de
aula. Mas pense que, em uma aula de Humanas, ao ler um romance, você
está tendo acesso a uma história sendo apresentada de múltiplas
perspectivas. Ou, na aula de História, você pode analisar um fato
histórico sob a perspectiva de diferentes grupos. E isso é muito
importante.
BBC Brasil - Um relatório recente da OCDE
sobre habilidades para o futuro defende que os trabalhadores precisam
tanto de conhecimento de linguagem e numérico como habilidades sociais e
de resolver problemas. Você concorda com a ideia de que linguagem e
números continuam sendo muito importantes?
Deming - Sim. A questão é que eles não bastam mais por si só. Você precisa ser capaz de fazer diversas coisas diferentes.
BBC Brasil - E qual o papel da educação em preparar as pessoas para o cenário atual?
Deming -
Se você perguntar às pessoas o que tentam levar consigo da experiência
escolar, certamente dirão que esperam que a escola as prepare para o
mundo do trabalho no futuro. Então, temos de nos perguntar: de que
formas as escolas são parecidas com o ambiente de trabalho moderno e de
que formas elas não são?
Muitas escolas são muito organizadas em
torno de um modelo em que o professor tem todo o conhecimento e
apresenta-o em um estilo de palestra. O ambiente de trabalho não se
parece em nada com isso - é um ambiente fluido, em que trabalhadores são
constantemente colocados em equipes para resolver problemas não
estruturados, e as pessoas têm papéis múltiplos.
Acho que
queremos que nossas escolas repliquem isso - que se pareçam mais com o
ambiente de trabalho moderno se querem ensinar as pessoas a serem
melhores trabalhadores.
BBC Brasil - Você mencionou mais
cedo que ser bom em cálculo tornava uma pessoa apta à universidade.
Também precisamos repensar a forma como avaliamos os estudantes?
Deming -
Sim, acho. É um exemplo de um entrave para muitos estudantes, que não
conseguem (ser bons em cálculo). E há poucos empregos em que você
realmente precisa ser bom em cálculo. Seria muito mais importante, no
mundo atual, que as pessoas entendessem estatística e probabilidades,
por exemplo.
Falando amplamente, acho que os sistemas
educacionais, pelo menos nos EUA e provavelmente em outros países, não
responderam muito às mudanças no ambiente de trabalho e precisam ser
repensados.
É difícil, porque o mercado de trabalho muda constantemente, mas temos de melhorar.
BBC Brasil - Há habilidades que as escolas poderiam simplesmente parar de ensinar, por terem se tornado irrelevantes?
Deming -
Não sei se vejo isso dessa forma, porque você frequenta a escola pelo
menos até os 18 ou 20 e poucos anos. E você espera estar aprendendo
coisas que serão úteis pelas cinco ou seis décadas seguintes da sua
vida. É um futuro muito incerto.
Sempre enfrentaremos o desafio
de tentar treinar as pessoas para um ambiente do trabalho do futuro.
Então acho muito importante que as escolas enfatizem, o máximo possível,
o desenvolvimento de habilidades gerais. Não queremos que as escolas
ensinem habilidades muito específicas, que podem ser úteis hoje, mas não
daqui a dez anos.
Na escola, queremos que as pessoas aprendam a
aprender. Trata-se em grande parte de dar às pessoas um kit de
ferramentas com as quais elas possam se aperfeiçoar ao longo do tempo.
Tanto
que, ainda que apoie a educação vocacional em alguns casos, me preocupa
que a educação muito específica se torne menos relevante diante de um
futuro incerto.
BBC Brasil - No seu estudo você menciona a
importância de intervenções já na primeira infância no que se refere a
habilidades sociais. Isso ajudaria a nos tornar melhores pessoas e
trabalhadores futuros?
Deming - É um
pouco especulativo, mas há boas evidências de que intervenções de alta
qualidade feitas no início da nossa vida têm impacto mais longo na vida
adulta, tornando-nos mais produtivos.
Uma possível razão disso,
em termos de educação, é que se você olha para uma sala de aula de
pré-escola, ela se parece mais com o ambiente de trabalho moderno do
que, por exemplo, a quarta série. Na pré-escola, você aprende a
socializar. A criança não aprende apenas números e letras, mas é
colocada em grupos para negociar, compartilhar seus recursos e ocupar
diferentes papéis.
Acho que, no meio do caminho, a escola se
torna mais formal, para ensinar letras e números - algo importante. Mas o
aprendido mais cedo, de como se portar no mundo, também é muito
importante.
Talvez nossas salas de aula depois da pré escola devessem se mais parecidas com isso.
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