Herança dos Grupos Sangüíneos
1. As Transfusões e os Grupos Sangüíneos
Há situações em que é necessário repor sangue em uma pessoa, o que se chama transfusão sangüínea. São úteis em casos de hemorragias decorrentes de traumatismos ou de cirurgias, ou em pacientes que apresentam formas intensas de anemia. São também usadas em pessoas que apresentam deficiência de algum componente do sangue, como os hemofílicos, que não produzem uma proteína importante para a coagulação. Entretanto, algumas pessoas, depois de receberem transfusão de sangue, apresentam manifestações graves, que muitas vezes determina a morte do receptor. Essas manifestações começam com um quadro semelhante a uma reação alérgica: febre, queda de pressão, palidez, desmaio, etc.
No início do século XX, o médico austríaco Karl Landsteiner realizou a seguinte experiência: misturando sangue de diferentes pessoas, observou que, em alguns casos, ocorria a formação de grumos grosseiros; outras vezes, não. Landsteiner chamou essas reações de aglutinação.
Vivemos em ambientes ricos em vírus, bactérias, fungos e outros agentes patogênicos capazes de nos invadir e causar doenças. Quando o nosso corpo é penetrado por um desses agentes, células de reconhecimento desencadeiam uma resposta de defesa, chamada resposta imune, que inclui a participação de células que fagocitam o microorganismo, e de células que produzem proteínas especiais chamadas anticorpos, que se ligam ao agente estranho, inativando-o.
As substâncias estranhas que desencadeiam contra si a produção de anticorpos são conhecidas como antígenos.
2. A Descoberta dos Grupos Sangüíneos
O sangue é um líquido aparentemente homogêneo mas, quando centrifugado, nota-se que é formado por duas fases: uma líquida, chamada plasma sangüíneo, e uma sólida, representada pelos elementos figurados.
Os elementos figurados são de três tipos: os glóbulos vermelhos, ricos em hemoglobina e responsáveis pelo transporte de oxigênio, os glóbulos brancos, que participam do combate contra as infecções, e as plaquetas, que desencadeiam a coagulação do sangue.
No plasma, estão dissolvidos os anticorpos e numerosas outras substâncias, como a glicose, íons minerais, algumas outras proteínas, hormônios, etc.
Na membrana plasmática dos glóbulos vermelhos, são encontradas algumas proteínas que algumas pessoas têm e outras não. Uma pessoa que não possui uma dessas substâncias pode reconhecê-la como uma partícula estranha (ou antígeno) e produzir anticorpos contra ela.
Em um primeiro estudo, Landsteiner conseguiu identificar dois antígenos, que chamou de aglutinogênios A e B. Analisando o sangue de diversas pessoas, classificou-os em 4 grupos, de acordo com a presença desses antígenos. Ele constatou, ainda, que esses quatro tipos de pessoas produziam diferentes tipos de anticorpos contra esses aglutinogênios, que foram chamados de aglutininas: anti-A (ou alfa) e anti-B (ou beta).
Esse sistema de classificação tornou-se conhecido como sistema ABO.
Quando uma transfusão sangüínea é realizada, pode ocorrer reação entre os aglutinogênios do doador e as aglutininas do receptor. Essa reação (ou aglutinação) seria responsável pelas manifestações observadas nas transfusões incompatíveis.
Podemos estabelecer um quadro de transfusões que podem ser realizadas:
Como as pessoas do grupo O não têm aglutino-gênios, seu sangue pode ser doado para pessoas de qualquer outro grupo, pois seus glóbulos vermelhos não serão atacados. Essas pessoas são doadores universais. As pessoas do grupo AB, como não possuem aglutininas, são receptores universais e podem receber sangue de qualquer outro tipo sem que ocorra aglutinação significativa.
3. A Determinação Genética do Sistema ABO
A produção desses aglutinogênios, e o grupo ao qual uma pessoa pertence, são determinados por uma série de 3 alelos múltiplos: Ia, Ib e i.
Ia - determina a produção do aglutinogênio A
Ib - determina a produção do aglutinogênio B
i - determina a ausência de aglutinogênios
Entre eles, há a seguinte relação de dominância:
Ia = Ib > i entre os genes Ia e Ib não há dominância, mas ambos dominam o gene i.
Genótipos
Fenótipos
Ia Ia, Ia i
grupo A
Ib Ib, Ib i
grupo B
Ia Ib
grupo AB
i i
grupo O
A determinação genética do sistema ABO permite resolver uma série de problemas, como a identificação de crianças desaparecidas, a solução de casos de trocas de bebês em maternidades, casos de investigação de paternidade, etc.
Vejamos dois exemplos:
Exemplo 1: Um homem do grupo A se casa com uma mulher do grupo B, e o primeiro filho desse casal pertence ao grupo O. Quais são os genótipos de todas as pessoas envolvidas e qual é a probabilidade de que esse casal venha ter um filho do grupo AB?
homem A X mulher B
filho O
Homens do grupo A podem ter genótipo IaIa ou Iai. Entretanto, como esse homem teve um filho do grupo O (genótipo ii), o seu genótipo só pode ser Iai. Usando o mesmo raciocínio, concluímos que essa mulher do grupo B possui genótipo Ibi.
A probabilidade de que esse casal venha a ter um filho do grupo AB (genótipo IaIb) é de 1/4 ou 25%.
Exemplo 2: Em uma maternidade, 2 casais tiveram filhos no mesmo dia e, por descuido da enfermagem, foram trocadas as pulseiras de identificação.
casal 1: homem A X mulher AB
casal 2: homem O X mulher B
criança X: sangue tipo O
criança Y: sangue tipo A
Qual criança é a verdadeira filha de cada casal?
A criança X não pode ser filha do casal 1, pois uma mulher de sangue AB (genótipo IaIb) não pode ter filhos do grupo O (genótipo ii). Por outro lado, a criança Y não é filha do casal 2, porque ela tem sangue A (genótipo Ia_), e nem o homem O nem a mulher B possuem o gene Ia.
Conclui-se que a criança X é filha do casal 2, e a criança Y é filha do casal 1.
4. O Sistema MN
Em 1927, o médico Karl Landsteiner e seu colega Levine descobriram outros dois antígenos, na membrana dos glóbulos vermelhos. São duas proteínas, chamadas antígeno M e antígeno N. Ao serem aplicadas em cobaias, desencadeiam a produção dos anti-corpos anti-M e anti-N, respectivamente. A presença desses antígenos é determinada por um par de genes alelos LM e LN, entre os quais não há dominância.
LM = LN
Genótipos
Fenótipos
LM LM M
LMLN MN
LNLN N
5. O Sistema Rh
Landsteiner e Wiener, em 1940, descobriram um novo antígeno no sangue de macacos reso (Macaca rhesus). Injetaram sangue do macaco em coelhos, e isolaram um anticorpo capaz de reagir com uma proteína presente na membrana dos glóbulos vermelhos dos macacos. Esse antígeno foi chamado de fator Rh, lembrando a espécie de macacos na qual ele foi identificado.
Quando punham em contato esses anticorpos com sangue humano, notaram que em 85% das amostras acontecia aglutinação, demonstrando que, nessas pessoas, havia o mesmo antígeno presente nos glóbulos vermelhos dos macacos. As pessoas que possuem o fator Rh na membrana dos seus glóbulos vermelhos são rh positivo (Rh +), e as que não possuem são rh negativo (Rh _).
A descoberta do sistema Rh possibilitou compreender porque algumas transfusões se mostravam incompatíveis, mesmo quando as pessoas envolvidas haviam sido testadas para o sistema ABO. Ao receber sangue rh positivo, uma pessoa rh negativo produz anticorpos anti-Rh e se torna sensibilizada. Caso venha a receber, em uma outra transfusão, sangue rh positivo novamente, irá ocorrer reação antígeno-anticorpo, provocando aglutinação e reações semelhantes às que acontecem quando há incompatibilidade pelo sistema ABO.
O quadro abaixo indica as transfusões que podem ser realizadas, de acordo com o sistema Rh.
Só há um tipo de pessoa que pode ser considerado verdadeiramente como doador universal. É aquela que possui sangue O negativo, que não contém antígenos do sistema ABO nem do sistema Rh. As pessoas AB positivo são receptores universais pois não produzem anticorpos anti-A, anti-B ou anti-Rh.
Portanto, ao se fazer uma transfusão, é necessário que tanto o receptor quanto o doador tenham sido testados para os sistemas ABO e Rh.
Esse teste, chamado tipagem sangüínea, é realizado colocando-se 3 gotas de sangue da pessoa sobre uma lâmina de vidro. Sobre cada uma dessas gotas, é colocada uma gota de soro contendo anticorpos: anti-A, anti-B e anti-Rh. A seguir, se procede a mistura do sangue com o soro, observando-se a ocorrência de aglutinação pela formação de grumos.
Caso ocorra aglutinação na presença de um determinado anticorpo, isso indica a presença do respectivo antígeno. Por exemplo, se acontecer aglutinação nas gotas de sangue que foram misturadas com os anti-corpos anti-A e anti-Rh, isso significa a presença dos antígenos A e Rh, e a ausência do antígeno B. A pessoa testada tem sangue A rh positivo.
6. A Determinação Genética do Sistema Rh
Vamos considerar, na herança do sistema Rh, apenas um par de genes alelos com dominância completa.
R - determina a produção do fator Rh
r - determina a ausência do fator Rh
R > r
Genótipos Fenótipos
RR rh positivo
Rr rh positivo
rr rh negativo
7. A Doença Hemolítica do Recém-Nascido
(D.H.R.N.)
No final da gestação, particularmente durante o parto, pode acontecer a passagem de pequenas quantidades de sangue fetal para a circulação materna. Ao entrar em contato com glóbulos vermelhos que contém o fator Rh, o sistema de defesa da mulher rh negativo irá produzir anticorpos anti-Rh, e a mulher torna-se sensibilizada.
Em uma próxima gestação, se ela novamente gerar uma criança rh positivo, deve ocorrer a passagem desses anticorpos anti-Rh para a circulação fetal, que passam a atacar as células vermelhas do feto, destruindo-as. Essa destruição chama-se hemólise.
Em conseqüência da hemólise maciça, a criança apresenta anemia intensa. A liberação de hemoglobina, contida no interior dos glóbulos vermelhos, faz com que o fígado produza grandes quantidades de bilirrubina. O acúmulo dessa substância deixa a criança com coloração amarela, o que se chama icterícia. A bilirrubina pode impregnar o sistema nervoso central, provocando sérias lesões neurológicas (kernicterus). Em um mecanismo de compensação, a medula óssea, local de produção de glóbulos vermelhos, começa a lançar na circulação fetal células imaturas, que ainda possuem núcleo ou restos nucleares. Essas células são os eritroblastos. Por isso, a doença também é conhecida por eritroblastose fetal.
Habitualmente, o primeiro feto rh positivo não apresenta a doença hemolítica, pois a sensibilização acontece durante o trabalho de parto e não há tempo para que os anticorpos maternos atravessem a placenta. O mais comum é que o primeiro filho rh positivo torne a mãe sensibilizada, e que os demais filhos rh positivos apresentem a doença. Entretanto, mesmo o primeiro filho pode desenvolver a eritroblastose fetal caso a mãe tenha sido sensibilizada previamente por uma transfusão de sangue rh positivo.
Condições para ocorrência da D.H.R.N.
mãe rh negativo (sensibilizada)
feto rh positivo