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22 de abr. de 2012

Doenças desconhecidas que a comida dos brancos provocou


No primeiro levantamento da saúde indígena não foi registrada a ocorrência de doenças cardiovasculares e menos de 5% dos examinados tinham pressão arterial elevada. Mas essa situação mudou
por Roberto Baruzzi
© rsfatt/Shutterstock
O Parque Indígena do Xingu, inicialmente Parque Nacional do Xingu, resultou de um amplo movimento que teve a participação dos irmãos Villas Bôas, além de personagens como Darcy Ribeiro, Noel Nutels e Heloísa Torres, diretora do Museu Nacional, entre outros defensores dos direitos dos povos indígenas. O Parque cobria uma área de  aproximadamente 26.300 km2, estendendo-se por 300 km da região dos formadores do rio Xingu, ao sul, e ao longo de sua calha até a cachoeira de Von Martius, ao norte, nos  limites do Mato Grosso e Pará. Era habitado por 14 povos indígenas dos troncos ou famílias de línguas aruaque, caribe, jê e tupi, incluindo os trumai, de língua isolada.

Em seus primórdios a história do Parque se reporta ao início do ano de 1946, quando a  expedição Roncador-Xingu, no contexto do movimento de Marcha para o Oeste do  governo federal, atingiu o rio Kuluene, um dos formadores do Xingu, após atravessar o território xavante, guerreiros temidos e avessos a qualquer contato com outros povos. Presentes na expedição, os irmãos Villas Bôas: Orlando, Cláudio e Leonardo tiveram seus primeiros contatos com os kalapalo e kuicuro, no Juluene. Nos meses seguintes o relacionamento se estendeu aos demais povos dos formadores do rio Xingu ou Alto Xingu. Em 1953, o processo de contato se estendeu até os metuktire, ou kayapó, na área norte do Parque, próxima da cachoeira de Von Martius.

Na época, teve início um movimento em defesa desses povos, ameaçados pela venda das terras que ocupavam desde tempos imemoráveis, o que levou à criação do Parque. Entre as atribuições definidas no decreto de sua fundação, estava: “Garantir aos povos indígenas a assistência médica, social e educacional, indispensável para assegurar sua soberania, com a preservação de seus atributos culturais”.

Nesse contexto se inseria a seguinte declaração dos Villas Bôas, de anos anteriores, baseada em sua convivência com povos indígenas: “É neste setor da saúde que a ajuda do civilizado pode ser de transcendente importância. Diante dos acessos violentos de malária, de gripe e de pneumonia os pajés são impotentes. Se for dada a esses índios uma assistência conveniente, não temos dúvidas de que em poucos lustros teremos  novamente o Alto Xingu como hábitat dos mais fortes e expressivos indígenas do Brasil”.

Em 1965, a convite de Orlando Villas Bôas, diretor do Parque, uma equipe médica da Escola Paulista de Medicina (EPM), hoje ligada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), foi avaliar as condições de saúde de sua população. Da avaliação resultou um acordo pelo qual a EPM se comprometia a enviar equipes médicas periódicas e, em situações epidêmicas, iniciar um plano de vacinação e abrir o Hospital São Paulo como unidade de retaguarda para seus habitantes. Essa foi a solução viável, dado o isolamento geográfico na época, e que se tornou possível com o apoio da Força Aérea Brasileira (FAB) no transporte das equipes médicas e remoção de pacientes. Os grupos  voluntários, eram formadas por médicos, enfermeiras e dentistas, contando sempre com a presença de alunos. Os estudantes têm assegurado, por mais de quatro décadas, a continuidade do Programa de Saúde ou Projeto Xingu, como é conhecido. Muitos deles voltaram a participar de outras equipes, mesmo depois de formados, alguns como membros do corpo dirigente do Projeto.

A política de saúde da EPM, no Parque, foi assim expressa por mim, em 1966, na condição de coordenador: “O desafio não é simplesmente implantar no Parque um modelo de assistência à saúde calcado na medicina ocidental, com mera transferência de tecnologia e locação de recursos. O real desafio é trazer benefícios à saúde do índio sem causar danos irreversíveis à sua cultura, sem destruir suas crenças e sua medicina tradicional. A busca de resultados imediatistas poderia significar um dano para essa população no decorrer do tempo, dentro do conceito de saúde definido pela OMS como um estado de completo bem-estar físico, social e 

ALUNOS DA UVA ELABORANDO AS PARÓDIAS!








1 de abr. de 2012

TESTE TESTE

24 de mar. de 2012

Manipulação genética Células-tronco podem ser reprogramadas para serem mais saudáveis?


Por Susan Young, da revista Nature

Uma equipe de pesquisadores corrigiu um gene defeituoso nas células-tronco pluripotentes induzidas (iPS) derivadas de células da pele de pessoas com uma doença hereditária metabólica do fígado. Os pesquisadores então desenvolveram as células-tronco em algo semelhante a células do fígado. Esse trabalho foi publicado recentemente na revista Nature.

A Alfa-1-antitripsina (A1ATD) é a doença genética do fígado mais comum, sendo causada por uma mudança no nucleotídeo único no gene que codifica a alfa-1-antitripsina (A1AT), inibidor da enzima que normalmente protege os tecidos corporais. A condição pode resultar em cirrose hepática, passível de ser tratada apenas com um transplante de fígado, e em um risco aumentado de câncer de pulmão e enfisema. A cura genética para a doença exigiria substituir completamente o gene mutado, porque qualquer proteína disfuncional restante continuaria formando agregados prejudiciais. "Você não pode simplesmente colocar uma cópia normal, porque isso não é suficiente para mudar a doença", diz Allan Bradley, geneticista do Instituto Wellcome Trust Sanger em Hinxton, Reino Unido, que é coautor do estudo mais recente.

Para corrigir a mutação, Bradley e seus colegas usaram uma molécula de engenharia chamada nuclease zinc-finger para descobrir e unir o gene defeituoso A1AT em células iPS derivadas de células da pele de pessoas com A1ATD. Eles usaram uma molécula de DNA de autoinserção chamada piggyBac para substituir a parte danificada.

Os pesquisadores então estimularam o gene corrigido das células iPS a se diferenciar em células que apresentaram alguns traços dos hepatócitos, que são as células do fígado mais afetadas pela A1ATD. Eles transplantaram hepatócitos em camundongos e, 14 dias depois, algumas das células corrigidas tinham integrado o fígado de roedores e foram capazes de produzir A1AT humana.

Embora as células corrigidas possuíssem várias características dos hepatócitos, não está claro se estes seriam capazes de agir como células do fígado totalmente maduras e, eventualmente, repovoar o órgão danificado por inteiro. Ninguém ainda foi capaz de reprogramar as células iPS em células totalmente maduras de qualquer tipo, sejam eles hepatócitos, células cardíacas ou neurônios, diz Markus Grompe, que estuda células-tronco do fígado na Oregon Health and Science University, em Portland."Estou ciente de que ninguém pode fazer um sósia real para qualquer tipo de célula", diz ele.

Verificação de antecedentes
Células-tronco cultivadas em laboratórios são conhecidas por construir mutações destinadas a verificar que suas alterações não foram piorando as coisas. Os pesquisadores sequenciaram o genoma de uma das linhas iPS de células corrigidas e compararam-no com os genomas das células da pele dos pais e com as células iPS não corrigidas. Em torno de duas dúzias de mutações surgiram na célula iPS não corrigida em comparação com a célula da pele dos pais, mas houve apenas algumas mutações em pontos extras nas linhas de células corrigidas.

"A correção genética não aumenta o número de anomalias genéticas que você pode encontrar em células iPS", diz Ludovic Vallier, biólogo de células-tronco da University of Cambridge, no Reino Unido, e um dos coautores do estudo. No entanto, Vallier está preocupado com o número de alterações nas linhas de células reprogramadas. Antes que as células possam ser desenvolvidas em uma terapia clínica, os pesquisadores devem entender as consequências biológicas dessas mutações, diz ele.

“Sequenciamentos como este deveriam se tornar padrão no campo de pesquisa', explica Stephen Duncan, biólogo no Medical College of Wisconsin, em Milwaukee. Dadas as descobertas sobre essas células em cultura, “temos de garantir que, quando se pensa em uma terapia de reposição de gene no contexto das células iPS, um esforço muito considerável é feito para se certificar de que as células são normais", diz ele.

Este artigo foi reproduzido com permissão da revista Nature. 

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O fascínio da memória


Relações entre emoção e fatores cognitivos demonstram a complexidade dos sistemas neurobiológicos responsáveis por diferentes dimensões da memória
por Mauro Maldonato e Alberto Olivero
ilustrações Oscar Vargas
A memória humana é uma faculdade maravilhosa e enganosa. Embora muitos a considerem um arquivo imutável de experiências e recordações, o que ela guarda não está esculpido em pedra. De fato, as lembranças tendem a desbotar com o tempo, deformando-se e indo ao encontro, mesmo em condições normais, de uma lenta decadência, de um esquecimento fisiológico. E não é raro que gerem em nós perturbadoras sensações de estranheza, fragmentação, não pertencimento e até mesmo recombinações ilusórias de imagens e informações que ocupam nossa mente como um caleidoscópio. A memória e o esquecimento, a imutabilidade e a reestruturação das lembranças são aspectos tanto conflitantes quanto complementares de nossa mente. Essa ambiguidade tem um valor evolutivo crucial. Se, de um lado, a memória desempenha uma função adaptativa fundamental para a espécie humana, de outro, sem a capacidade de esquecer não aprenderíamos nada de novo, não corrigiríamos nossos erros, não inovaríamos velhos esquemas. Assim, é plausível afirmar que, enquanto a memória tende a preservar a história individual e coletiva, o esquecimento tende a ofuscar, progressivamente, as recordações infantis, os eventos do passado, os empreendimentos coletivos, as antigas memórias. Não por acaso, os humanos erguem lápides e monumentos para se defenderem do esquecimento.

Essa ambiguidade não se deve apenas à sua natureza vasta e heterogênea, mas também a suas relações intricadas. A própria natureza polissêmica do termo memória – utilizado por biólogos, psicólogos, antropólogos e historiadores para se referirem a processos e situações muito diferentes entre si, ainda que unidos pelo elemento comum da “flecha do tempo” – dificulta o aparecimento de um significado compartilhado e de fronteiras conceituais bem definidas. A etimologia grega do termo – mneme e anamnesis – espelha uma clara distinção entre a memória como esfera essencialmente intacta e contínua, e a reminiscência ou anamnese como exercício de presentificação das lembranças que o esquecimento vela. EmMenon, Fedro e outros diálogos, Platão afirma que todo conhecimento verdadeiro, todo aprendizado autêntico, é, na verdade, anamnese, esforço para chamar de volta à mente o que havia sido esquecido.

Hoje, uma época de predomínio cultural do paradigma medico- biológico, a memória (mneme) é identificada como um mecanismo cerebral puro, um arquivo das informações do sistema nervoso central; por seu lado, a reminiscência (anamnesis) é igualada a alguma coisa mais complexa e sutil do que o simples registro dos eventos. A reminiscência, de fato, implica uma reflexão sobre o passado, uma evocação das lembranças prazerosas ou dolorosas, sepultadas ou censuradas, que formam a essência de nossa individualidade. Mas, como é evidente, a disponibilidade do arquivo não coincide necessariamente com sua consulta e, portanto, a mera existência de uma lembrança, boa ou deficitária que seja, não se identifica com o princípio de identidade e de unicidade que decorre da individualidade de nossas recordações, conforme considera Oliverio. Nos últimos anos, os neurocientistas descreveram meticulosamente as bases moleculares, os fenômenos sinápticos e as alterações dos circuitos nervosos da memória, tentando preencher – por métodos não invasivos e multiparamétricos das imagens cerebrais – as lacunas explicativas da pesquisa psicológica. O conhecimento detalhado dessas dimensões poderia parecer pouco relevante aos que veem a mente como um conjunto de vivências diferentes e de experiências privadas e indizíveis. Em diferentes situações ligadas a danos e alterações da função nervosa, no entanto, a interpretação neurobiológica é fundamental para a compreensão do que acontece em nossa mente, como são reestruturadas as lembranças, como se dá o esquecimento.
Psicobiologia da memória

Os primeiros estudos experimentais sobre a memória remontam à segunda metade do século 19, quando o alemão Hermann Ebbinghaus divulgou entre a comunidade científica um texto – Über das Gedachtnis(1885) – relatando experimentos sobre a memória e o esquecimento que realizara sobre si mesmo. Nessa obra, um verdadeiro marco da psicologia, ele mostrou a existência de uma curva do aprendizado e de uma curva do esquecimento. Ebbinghaus recorreu a um método – definido como da “poupança”– que consistia em decorar diversas séries de listas que continham silabas destituídas de sentido (ARB, DRE, MIR, NOT e assim por diante); o procedimento era repetido, mais de 100 vezes, com uma lista diferente depois de 20 minutos, 1 hora, 9 horas, 1 dia e mais dias. O experi mento demonstrou que se entre a primeira e a nona hora havia uma queda rápida do que fora aprendido, à medida que o tempo passava após o fim da prova o processo de esquecimento se tornava mais lento: isto é, exatamente no polo oposto daquilo que se dava com o processo de aprendizado.

Para um enquadramento psicobiológico da memória foi necessário esperar até meados do século passado, quando o neurofisiologista canadense Donald O. Hebb formulou a hipótese do “duplo rastro”. Segundo essa hipótese, uma experiência altera um circuito nervoso responsável por uma codificação a curto prazo (de poucos segundos ou minutos de duração), modificando a atividade elétrica de alguns neurônios capazes de codificar a informação de maneira precária, instável. A esse tipo de codificação segue-se outra, estável, a memória de longo prazo (de meses ou anos de duração), ligada a modificações estruturais duradouras dos neurônios ou dos circuitos nervosos (consolidação da memória). Segundo Hebb, os dois tipos de memória correspondem a modificações funcionais das sinapses nervosas (memória de curto prazo) e a modificações estruturais ou permanentes das sinapses nervosas e dos neurônios (memória de longo prazo). A hipótese postulada por Hebb há aproximadamente meio século sobre a plasticidade funcional ou estrutural neural e sináptica – que implica uma reestruturação de escala das redes nervosas – recebeu inúmeras confirmações experimentais.

Uma das mais importantes referências ao modelo hebbiano está relacionada a pesquisas sobre as bases neurobiológicas da memória, em boa parte fundamentadas na análise das alterações da atividade elétrica neural e sináptica: particularmente da denominada potencialização de longo prazo (Long-term potentiation, LTP) da atividade elétrica das sinapses nervosas. Durante a LTP, em decorrência de um estímulo especialmente intenso ou repetido ao longo do tempo, uma sinapse potencializa seu nível de resposta, incrementando sua eficiência em até duas vezes e meia. Esse incremento da atividade elétrica sináptica se desenvolve em poucos minutos após o estímulo inicial e permanece relativamente estável por um bom tempo; em determinadas condições, por várias semanas. Na essência, quando um estímulo signifitivo é recebido por um neurônio, como no caso dos estímulos que se seguem repetidamente durante o condicionamento, pode- se verificar um aumento da eficiência das suas sinapses. Com o tempo, aliás, podem se formar outras sinapses que contribuem para conectar os neurônios em um novo circuito – o chamado circuito local – que codifica uma experiência ou memória específica. Portanto, de uma alteração funcional inicial (a atividade elétrica vinculada a modificações dos íons, entre eles o cálcio) os neurônios vão em direção
a modificações estruturais provocadas pelas alterações de algumas enzimas e pela síntese de proteínas que alteram o esqueleto dos neurônios, estimulando a formação de sinapses que se soldam entre si. As variações do circuito nervoso permitem registrar a informação no interior de redes neurais.

A reestruturação das redes nervosas que se segue à experiência é o fundamento de uma teoria da mente – ou do cérebro – conhecida com o nome de “conexionismo”. Segundo esse modelo a mente dependeria da existência de redes que se auto-organizam, pois cada unidade da rede (os neurônios) se caracteriza por um nível numérico de atividade que muda, no tempo, em função da atividade das unidades às quais está conectada e pela força das conexões ou nós. Na origem do aprendizado haveria essas mudanças. Para os conexionistas o cérebro se adaptaria ao ambiente por meio da rede (ou circuito local), espelhando suas características salientes graças a variações sinápticas.

Do ponto de vista empírico o neurocientista americano Erik Kandel demonstrou que nos invertebrados (como nos vertebrados superiores) o registro de uma experiência está correlacionado aos mecanismos do LTP e da formação de sinapses. Essas evidências foram obtidas pelos experimentos de Kandel, em 2007, com lesmas-do-mar, Aplysia californica, que reagem a um estímulo tátil (um fino jato de água) retraindo a brânquia com uma conduta de autoproteção explícita: conduta que se extingue se os jatos de água continuam no mesmo ritmo. O acostumar-se da Aplysia dura o tempo em que se deu a mudança no âmbito dos circuitos nervosos. De fato, as sinapses entre o neurônio sensitivo (que reage ao estímulo tátil) e o motor (que ativa os músculos da brânquia) se tornam mais estáveis e se comunicam mais facilmente através dos mensageiros nervosos para a consolidação da experiência. Esses experimentos, que deflagraram diferentes pesquisas com outras espécies animais, incluindo-se os mamíferos, indicam que a consolidação de uma experiência se baseia em mecanismos similares e que nos mamíferos as experiências são consolidadas graças a modificações bioelétricas que envolvem o hipocampo, estrutura do sistema límbico que vai em direção de LTPs em diferentes fases da memorização e que está funcionalmente ligado ao córtex temporal.

O papel da amígdala e do hipocampo

Até aqui consideramos a memória sem examinar a influência das emoções em suas esferas psicológicas. Os processos emotivos influenciam e modulam profundamente a biologia da memória. Na verdade, elas provocam inúmeras modificações vegetativas somáticas, cuja tarefa não é apenas informar o cérebro de que o corpo está emocionado – conferindo precisos matizes a determinadas experiências – mas também consolidar as experiências. Pensemos, em relação a isso, no papel exercido pelas endorfinas (peptídeos de ação analgésica similar à morfina que o cérebro libera em resposta a estímulos de dor ou emotivos) ao alterar a função dos mediadores nervosos que modificam a atividade das sinapses nas redes dos neurônios que registram as experiências.

As emoções intervêm tanto diretamente nos mecanismos da memória, agindo na bioquímica cerebral, quanto indiretamente, por mensagens que o corpo emocionado envia ao cérebro. Trata-se de evidência já consolidada de que nos animais submetidos a experiências ricas de componentes emocionais a memorização é potencializada, já que os nervos (as fibras do nervo vago) indicam ao cérebro a liberação, em âmbito periférico, de substâncias típicas dos estados emocionais, como a adrenalina, secretada pelas glândulas suprarrenais. Nesse sentido, a biologia da memória não diz respeito apenas àqueles fenômenos neurobiológicos que asseguram a codificação de curto ou longo prazo das experiências, mas também à modulação exercida pelas estruturas nervosas e moléculas vinculadas à emoção.

As relações entre emoção e fatores cognitivos mostram o quanto são complexos os sistemas neurobiológicos responsáveis pelas diferentes dimensões da memória. Há quase meio século, o neurocirurgião americano William Scoville e a neurocientista inglesa Brenda Milner descreveram o caso clínico de um paciente, que mais tarde ficou famoso com suas iniciais, HM, que desde o nascimento padecia de uma grave forma de epilepsia que tornava sua vida bastante penosa. O procedimento neurocirúrgico para remover o tecido nervoso que causava as convulsões teve sucesso. A capacidade de percepção de eventos, raciocínio, fala e de recordar os eventos mais recentes foi conservada, assim como a memória semântica, apenas parcialmente alterada. Na íntegra, ao contrário, estava a capacidade de revocar tanto os eventos anteriores à cirurgia, quanto os seguintes a esse procedimento. Tratava-se de uma amnésia episódica tanto retrógrada (o passado) quanto anterógrada (experiências seguintes).

A situação de HM, no entanto, era estranha. As lacunas de sua memória não diziam respeito a sua vida inteira, mas apenas aos anos mais recentes, aproximadamente uma dezena deles. Os déficits da memória infantil e do início da adolescência eram muito menos relevantes. A singularidade do caso HM induziu neuropsicólogos a refletir: se a sede da memória fosse a região temporal média, sua ablação cirúrgica teria inibido a formação de novas lembranças, mas também apagaria todas as lembranças do passado. HM, no entanto, guardava as lembranças mais antigas, as consolidadas, distribuídas nos circuitos corticais: isto é, aquelas que – após horas, meses ou até mesmo anos – a região temporal média (hipocampo, amígdala e córtex temporal) codifica em experiências, decompõe em categorias, conota com base em seu significado e, enfim, distribui nas várias regiões do córtex cerebral.

Em decorrência dos estudos sobre HM e sobre as relações entre hipocampo, lóbulo temporal e memória, as pesquisas passaram a examinar as estruturas nervosas que, se prejudicadas, provocam amnésia. Esses estudos demonstraram que a região temporal está vinculada ao sistema límbico (amígdala e hipocampo) e essa região com o diencéfalo (tálamo) através do fórnix: região temporal, sistema límbico e tálamo formam uma espécie de circuito da memória de que, obviamente, faz parte todo o córtex cerebral, em conexão com o temporal. Todas essas estruturas nervosas estão envolvidas na chamada memória explícita, que implica um reconhecimento consciente das experiências de vida. De fato, sensações e experiências, para serem transformadas em memórias explícitas, devem atravessar uma espécie de funil, a região temporal, e, daí, passando pelo hipocampo e pela amígdala (em que são conotadas por características espaciais e emotivas entre outras) alcançar o diencéfalo (tálamo) onde as experiências são reunidas e registradas sob forma de memórias estáveis nos circuitos cerebrais. Esse circuito córtex temporal-hipocampo-diencéfalo permite conectar as diferentes experiências da vida diária (sensações, imagens mentais, emoções, avaliações e juízos de realidade) para transformá-las em memória episódica, em eventos de nossa história individual. Trata-se de estruturas que desempenham papel também na memória semântica, como quando aprendemos nomes novos, registramos estavelmente números de telefones e aprendemos novos vocábulos. Por isso, conforme a amplitude da lesão nervosa, os pacientes amnésicos têm dificuldade não apenas para formar novas lembranças ou para acessar recordações existentes, mas também para apreender novas experiências.

Nos últimos anos o estudo da função dos núcleos subcorticais – entre os quais o conjunto do estriado-caudato-putâmen e núcleo accumbens – solicitou um modelo de memória mais complexo, que integra seus diferentes componentes cognitivos, emocionais, motivacionais. É coisa notória, aliás, que lembramos os eventos emotivamente significativos, e que a motivação e o reforço têm um papel central no aprendizado. Interface entre funções cognitivas, motoras e motivacionais é o estriado ventral. Ele está no centro tanto dos comportamentos “motivados” voltados a uma finalidade, como do tratamento de informações que dizem respeito ao contexto, fundamentados em associações complexas entre estímulos diferentes.

No âmbito dessa rede funcional o hipocampo desempenharia a função de monitoramento do ambiente exterior, correlacionando entre si velhas e novas informações, como as velhas e as novas memórias espaciais; a amígdala estaria envolvida na regulação das respostas emotivas e, portanto, na aproximação de novos estímulos; enfim, o córtex pré-frontal estaria envolvido no planejamento das respostas. Essa hipótese é corroborada por inúmeros resultados experimentais que mostram que o bloqueio das vias que alcançam o estriado ventral a partir do córtex pré-frontal ou do hipocampo inibe a formação e a elaboração de associações entre informações não reforçadas (associações estímulo-estímulo), essencial nos processos cognitivos complexos; enquanto lesões do núcleo basal lateral da amígdala, ou das vias que partem daí para o estriado induzem a um déficit da resposta normal aos novos estímulos e das respostas emotivas.

Fidelidade e infidelidade da memória

Como foi observado, a memória vai ao encontro do esquecimento, evolui no tempo, se reestrutura e é influenciada por outras experiências e lembranças. Essa mutabilidade foi confirmada essencialmente por duas linhas de pesquisa: uma experimental, a outra, clínica. A primeira valeu-se das pesquisas de Larry R. Squire (1987) sobre os efeitos negativos do eletrochoque (tratamento ainda utilizado pelos psiquiatras nos casos de depressão grave e resistente aos psicofármacos) na memória humana e animal. O neurocientista americano observou que o eletrochoque aplicado logo após uma experiência – antes que a memória de curto prazo se consolide na de longo prazo – provoca uma amnésia retrógrada: ou seja, apaga a lembrança daquela experiência devido à interferência do eletrochoque nos mecanismos de consolidação da memória. Ainda assim, o eletrochoque influi não apenas no processo de consolidação da memória: age também nas memórias consolidadas, divergindo da opinião dos que por muito tempo afirmaram que, uma vez consolidada, a memória já não estaria exposta a qualquer condicionamento. A eliminação por eletrochoque de parte das lembranças consolidadas, mesmo após meses – tanto para a esfera das lembranças associativas quanto para a das lembranças cognitivas –, indica que a memória é passível de remanejamentos e reelaborações.

Na verdade, mais que de consolidação da memória fala-se hoje de reconsolidação: um processo contínuo de reorganização da memória, nada objetivo. A reconsolidação é considerada um meio para integrar as coisas novas aprendidas nas experiências anteriores, sujeitas a reestruturações tanto nas formas mais simples do condicionamento animal quanto nas mais complexas memórias autobiográficas. Da mutabilidade das lembranças ao longo do tempo também são testemunhas as análises de pesquisas de tipo longitudinal, fundamentadas em autobiografias, coletadas à distância de 2, 5 e 10 anos pela psicóloga Margareth Linton. A partir de 1972 a psicóloga americana começou a anotar de forma concisa, utilizando sempre o mesmo “módulo” de diário (aproximadamente 3 linhas), diversos eventos cotidianos. Dia após dia ia anotando os acontecimentos, uniformizando a extensão dos registros por meio das habituais três linhas, para evitar que desse um espaço diferente às diversas lembranças, facilitando assim gravar alguns em lugar de outros. Margareth transcrevia pelo menos dois eventos por dia, e, uma vez por mês, puxava ao acaso as fichas relativas a dois fatos, tornava a lê-las, procurava estabelecer suas datas e revocá-los. Na hora da transcrição e da releitura, os acontecimentos eram avaliados também nos termos de sua relevância, das emoções envolvidas, dos significados e assim por diante. Por meio desse procedimento meticuloso, tendo a si mesma como sujeito e objeto do experimento, Margareth chegou a estabelecer que as lembranças vão ao encontro do esquecimento no ritmo de aproximadamente 5% a 6% ao ano. Esse ritmo implicaria o desaparecimento de cerca da metade das lembranças de eventos específicos se esses casos não fossem incluídos no âmbito do mais vasto sistema da memória autobiográfica relativa aos fatos de caráter geral ou aos períodos de nossa vida: de fato, cada um dos tijolos com que são construídos esses recipientes mais amplos pode desagregar, enquanto, ao contrário, a percepção do fluxo das lembranças e de seu significado global permanece.

Em resumo, a persistência de lembranças ou experiências que cada qual considera serem marcos da própria vida não é nada estável. O mesmo evento é narrado de maneira diferente, os detalhes e até mesmo seu significado mudam, como se a memória, em lugar de corresponder a uma fotografia precisa da realidade, fosse um pedaço de massa de modelagem, que vai gradualmente mudando de forma. 

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