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29 de ago. de 2010

Vida Sintética e Ética



Técnicas de manipulação genética estimulam novas discussões jurídicas
por FÁBIO ULHOA COELHO
A experiência de criação em laboratório de “vida sintética” inevitavelmente iniciou discussões sobre desdobramentos éticos e jurídicos. A equipe de Craig Venter, partindo do arquivo eletrônico com a descrição do sequenciamento do genoma de uma bactéria, reproduziu-o com bases químicas, inserindo-o numa célula de outra bactéria, da qual extraíram previamente o DNA. O ser assim gerado se desenvolveu e se reproduziu.Essa experiência deve se repetir com animais mais complexos, como mamíferos e, evidentemente, o ser humano. Conhecido o sequenciamento do genoma de uma pessoa qualquer – digamos, Albert Einstein –, será possível aglutinar em laboratório timinas, adeninas, guaninas e citosinas rigorosamente na mesma ordem, implantá-las numa célula reprodutiva humana sem DNA, transpô-las ao útero de uma mulher e aguardar que o ciclo natural da gestação cuide do resto. Einstein renascerá? Não é possível ter certeza disso, pois ainda são inconclusas as discussões sobre a extensão da influência do meio sobre o desenvolvimento da personalidade. Quer dizer, se o bebê não for amado ou desamado na mesma forma que foi o pequeno Albert, na Alemanha do último quarto do século 19, é quase certo que terá perfil psicológico diferente. Além disso, será uma pessoa nascida em outro tempo e lugar, com outra história. É provável, assim, que se frustrem as expectativas depositadas no futuro desempenho intelectual do rebento. O temor dessa variante de clonagem é injustificado. Se certa memória da história de cada um de nós se imprime, de algum modo, em nossas timinas e demais bases químicas do DNA, a pessoa gerada a partir da reprodução do mesmo esquema de sequenciamento de genoma de outra não transportará essa memória, as a eventualmente contida nas bases empregadas pelos cientistas. Outro uso da técnica objeto do experimento é que deve preocupar as discussões éticas e jurídicas. Se com as pesquisas genômicas descobrirmos como desenhar em computador um ser humano ideal, inapto a desenvolver as doenças conhecidas de origem genética, será possível à medicina curar esses males desde o início. O casal com propensão a gerar filhos com determinada doença poderia contratar os serviços de uma clínica de fertilização que ajustaria o sequenciamento das células reprodutivas ao projeto ideal de ser humano, eliminando o risco. Aqui reside a questão crucial, de ordem ética e jurídica. Deve a lei reconhecer aos casais que desejam ter apenas filhos saudáveis o direito de utilizar essa técnica? Sendo a saúde apenas uma de muitas características portáveis por nós, a questão se abre igualmente a uma gama imensa de possibilidades – tipo de inteligência, compleição física etc. Essa discussão interessa apenas a quem não crê num Deus criador e ordenador. Aqueles que acreditam ter o homem, com essa conquista científica, definitivamente avançado o sinal e afrontado a vontade divina não necessitam do aclaramento da dúvida ética ou jurídica. Basta-lhes a crença para inibi-los a utilizar a técnica, ao gerarem seus filhos. A discussão deve ser contextualizada, assim, numa questão filosófica altamente complexa e, por isso mesmo, constantemente evitada: a de quanto a atual sociedade democrática enfraquece a espécie humana. A seleção natural é, evidentemente, o processo de supremacia do mais forte, do mais apto a relacionar-se com o meio ambiente. A cultura liberta o ser humano dessa cruel imposição da seleção natural. Permite à espécie humana, após longo processo civilizatório, integrar também membros desafortunados, portadores de limitações físicas ou mentais. Mas, ao desafiar o princípio básico da seleção natural, dando chance de viver e se reproduzir a todos os homens e mulheres, e não somente aos mais aptos, a cultura acaba envolvendo a espécie humana numa estratégia arriscada. A discussão é altamente complexa e constantemente evitada, porque pode resvalar em execráveis postulações de controle da “pureza” da espécie humana. Não é disso que se trata. A sociedade democrática deve continuar a abrigar todos os homens e mulheres, sem qualquer distinção, em vista da plena igualdade de dignidade que cada um de nós carrega. Mas, sem abrir mão desse valor fundamental, conquistado a duras penas, talvez não devamos deixar de nos preocupar com a pertinência das estratégias adotadas enquanto espécie em evolução. A técnica prometida por aquele experimento pode atender à delicadíssima questão evitando-se as limitações na origem. O ser humano caminha para ter nas mãos o controle da evolução. Assim como deverá, um dia, de controlar a evolução da própria espécie, poderá também submeter à mesma lógica a das demais. Os dois vetores tendem a se desenvolver simultaneamente. O processo de evolução das espécies, que hoje designamos como “seleção natural”, corre o risco de se transformar em algo próximo ao que poderíamos deduzir da expressão “seleção cultural”. Isto só aumenta a já enorme responsabilidade do Homo sapiens.

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